domingo, 31 de janeiro de 2010

Escrita automática

Fragmento de texto nº1: Quando lembrei de esquecer.

Acordei de olhos fechados para que nem um sonho me escapasse. Cega, quase fui atropelada pela vida quando, na parada de ônibus, esperava minha bicicleta vir me buscar (preciso enxugar os ouvidos!).
Escondi os relógios da minha cidade para que o tempo não achasse como passar por mim. Assim não teria como esquecer, e não esquecendo não precisaria lembrar – lembrar é algo muito difícil para quem, no caminho de outros, perdera a esperança.
Há lembranças, porém, que não merecem ser lembradas. As minhas dei toda a um cão, dono e proprietário do apartamento de cima: era seu dia de natal e eu, sem presente, passado ou futuro, ofereci-lhe lembrancinhas. Ele as comeu e sua barba nunca mais parou de crescer, mais ainda quando as aparava. Há esperanças que não merecem ser esperadas.
Se fosse eu quem as tivesse jantado, com café frio e adoçante, teria para sempre os olhos a vazar – e de certo estaria inaugurando o mar. Afogado por esse oceano, meu peito logo abortaria o pé de saudade roxa que nele fora plantado e enraizado.
Por isso olho para os lados e para o céu antes de sair de casa (caso eu esteja dormindo), seco o corpo com fotografias antigas após cada banho e tenho alergia a calendários. Para que tantos dias?
Só preciso de uma noite para esquecer de lembrar e, acordando de olhos fechados, continuar sonhando.

Fragmento de texto nº 2: Minha cama é o Rio São Francisco

Minha cachola mais parece um terreiro onde uma pomba gira em carrosséis de xícaras de chá e café branco. Lá, alguma coisa faz downloading em mim, boa anfitriã, cavalo, cobra e jacaré, que recebo cartas gravadas em vinil trazidas por quem parte. Prefiro o que fica inteiro, mas o amor tem dessas coisinhas.
Trago minhas malas na falta de outro cigarro. Não adianta, cara pálida, não viajo em cometas – odeio trens!
Seria Exu quem tivera escrito aquilo tudo? E eu que pensei que ele falasse outra língua... Acho que está faltando espaço no meu flexibilíssimo disco rígido. Acho que está sobrando espaço na minha cama. “Papai Noel, cara de bunda, da próxima vez traz o que eu não te pedi!”
Ah! Se meu fusca calasse, se eu tivesse um passe, se ele me ligasse, e o fogo não apagasse, a água não molhasse, azul não violetasse, borboleta não pousasse, pombas não voassem, só girassem, girassem, girassem, tudo permaneceria na mesma merda. Desejos de coxias não se agradecem. Tão grego... O amor também tem dessas dorzinhas.
A questão é não terminar e pegar a reta, o cateto e a hipotenusa, mas eu ainda sou muito idosa, ainda não tenho um coração só meu, não bordo lençóis com raios de sol e nem tenho como pedir pra morar um pouquinho. O gato de Alice levou meu sorriso, meu Jah! E desde então não consigo dormir. Na minha cama que sobra espaço não há lugar para sonhos com baleias. Nela goteja veneno de rato sempre que cai estrelas – ele escorre por entre as telhas quebradas que abrigam Santo Antônio de pernas para o ar (estaria ele numa roda de capoeira?). Na minha cama sobra espaço, sim, ela parece o Rio São Francisco mas não me cabe mais. O amor tem dessas desgracinhas.
Não tem porque esperar mais o natal. O negócio agora é passar DVD para VHS enquanto está nublado o céu da minha boca. Deixe que me caiam os dentes. Nascerão unhas no lugar dos cabelos perdidos durante a viagem – já disse que adoro comboios?
Tá bom de acabar: Em casa de ferreiro pra que se usa espeto? E quem guarda com fome é um otário. “Desloque” e consiga seguir. O sapo foi costurado, a vela vermelha acesa e o despacho feito. O jeito é seguir despejado, girando como a mão que meche o açúcar em xícara de chá e café lilás, como quem manobra roda gigante, como quem se joga do CFCH, como a esposa do pombo correio que me trouxe um vinil próxima semana, a D. pomba que gira. Quanta bobagem pra dizer Adeus... O amor tem dessas delicinhas. O amor é bom. Bril, bril, bril, vai pra... com ou sem rima?
Só 1 minuto – fica assistindo o “Soletrando” enquanto eu vou ali me afogar no Velho Chico.
***
22/06/09
Elis Costa, exercício para o processo de Be.

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